fonte: Observatório da Saúde RJ
Quitéria esperou quatro meses para realizar um exame. Eraldo diz ter sido salvo de um infarto pelo bom atendimento que recebeu dos médicos. Gabriel entrou e saiu do hospital sem o tratamento para pedra no rim de que precisava. Cristiane é só elogios à UTI na qual o filho está internado. Em comum nessas experiências está o tratamento médico em hospitais públicos.
Uns avaliam como excelente, outros como péssimo. As grandes unidades hospitalares do Brasil que possuem as portas abertas a toda a população costumam apresentar duas faces: uma é o tratamento eficiente de casos de saúde complexos e a resolução de problemas dos pacientes. A outra é formada pela superlotação, as filas e o atendimento caótico.
O que explica esse contraste? Para especialistas, as respostas estão em parte fora dos hospitais. Um país que historicamente privilegiou o atendimento hospitalar e que só conseguiu ampliar o atendimento básico nas últimas décadas possui como desafio melhorar o atendimento de casos de saúde que poderiam ser resolvidos fora do hospital, mas que continuam lotando corredores e engrossando filas.
Este é o segundo capítulo de uma série de quatro episódios sobre as desigualdades do SUS. No primeiro, bolsões de excelência contrastam com hospitais sem remédios, falta de médicos ou ineficientes nos diagnósticos. No terceiro, a ser publicado no sábado, porções do interior do Brasil ainda esperam pela prometida “universalização da saúde”. O último, no domingo, descreve as desigualdades no atendimento aos pacientes diagnosticados com câncer no país.
Hospitais públicos resolvem casos complexos
No início da manhã do dia 19 de maio, um sábado, o advogado Eraldo Bulhões Júnior, 58, teve um infarto e foi levado às pressas ao HGE (Hospital Geral do Estado), localizado em Maceió e maior emergência pública de Alagoas. “Em menos de uma hora já estava fazendo um cateterismo. Só estou vivo por eles terem atendido bem”, lembra. Em março, o hospital foi premiado pelo Programa Latin America Telemedicine Infarct Network com o melhor índice de pessoas salvas por infarto entre os hospitais participantes.
Para casos como o de Eraldo (foto), é imprescindível o atendimento hospitalar de alta complexidade. Ele fecha um ciclo de atendimento de saúde que começa pela atenção básica e por medidas de prevenção e passa pelas consultas médicas e realização de exames de complexidade média. É melhor (e mais barato) prevenir do que remediar, e o ideal seria que usássemos pouco o hospital. De preferência, apenas em situações em que só ele salva, como em acidentes.
Ocorreu com o filho de Cristiane de Oliveira, 41. Ele bateu forte a cabeça em um acidente de moto e precisou de tratamento em coma induzido. Ocorreu também com o marido de Edenalva Andrade, 43. Ele ficou desacordado após cair de uma laje e precisava passar por cirurgia devido a um coágulo na cabeça.
As duas acompanhavam os pacientes internados na UTI do Hospital do Mandaqui, referência em traumas na zona norte de São Paulo, quando conversaram com a reportagem do UOL. “Pelo menos na parte da UTI, é muito bom. Eu nunca esperava isso desse hospital por ser público”, conta Cristiane.
A função dos grandes centros hospitalares é tratar os casos mais graves de saúde e eles não seriam pouco utilizados se só fizessem isso. Para Maria do Carmo, ex-diretora de Atenção Hospitalar e Urgência do Ministério da Saúde, os nossos índices de violência, de acidentes de trânsito e de doenças crônicas e degenerativas fazem do hospital de atendimento complexo local muito requisitado pela rede de saúde.
“A boa atenção básica contribui muito, mas não evita hipertensão arterial, diabetes, doenças que são consequências de hábitos de vida. Por isso, é preciso que exista boa rede de urgência e emergência e uma boa retaguarda hospitalar para reduzir sequelas e mortes”, afirma a especialista.
O Hospital do Mandaqui, por exemplo, é o destino principal de ambulâncias que atendem casos de múltiplos traumas na região em que ele está localizado. “Tem neurocirurgião e cirurgião vascular 24 horas”, explica Antônio Jorge, coordenador da Coordenadoria do Serviço de Saúde do Estado de São Paulo.
Mas se for “só” uma pedra no rim
A dor provocada por uma pedra no rim fez o administrador Gabriel Carlos Júnior, 26, correr para o Hospital do Mandaqui, de responsabilidade do governo do estado. Ele chegou no início da manhã, tomou remédio para aliviar a cólica, realizou exames e foi embora no começo da tarde com o rim inchado e a orientação para procurar outro grande hospital que pudesse retirar a pedra.
“Não fizeram o procedimento porque a máquina estava quebrada”, resignou-se. O cálculo renal está entre os problemas de saúde que podem ser tratados em ambulatórios menores que possuam os aparelhos adequados. Em São Paulo, o atendimento de baixa e média complexidade é de responsabilidade dos prontos-socorros da prefeitura.
O inchaço sem resolução do rim de Gabriel reflete outro, ainda maior: o dos casos de média complexidade que não têm vazão nas redes de atendimento à saúde. Para especialistas, as pedras no caminho desse tipo de serviço são as do investimento insuficiente, da ineficiência de pequenos hospitais que deveriam resolver os casos mais simples e das redes de assistência mal estruturadas.
“O gargalo está nas consultas de especialidades, cirurgias e internações eletivas”, diz Oswaldo Tanaka, professor titular e diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Para o especialista, desde a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), há 30 anos, o Brasil conseguiu incluir com sucesso milhões de pessoas ao sistema de saúde. “Mas não se preparou para outras etapas. E a etapa hospitalar é mais cara que a do atendimento médico em unidade básica”, conclui.
Um exemplo do gargalo da média complexidade apontado por ela está no tratamento do câncer de colo de útero. “A mulher consegue fazer papanicolau [que permite rastrear a doença] na atenção básica. E o acesso à quimioterapia em casos de câncer avançado não é tão dificultado. Mas não consegue [com facilidade] exames de ultrassom e tomografia, que estão no meio do caminho. Aí chega ao tratamento em estágio avançado do câncer”, resume.
Ao maior custo de procedimentos de complexidade média em comparação com a baixa, soma-se o financiamento insuficiente, que tem impactos distintos nos diferentes estados, dependendo de como está organizada a rede de assistência.
Eder Gatti, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, dá exemplo da situação que avalia ser a de São Paulo: “O governo federal não investe o que deveria. O Estado investe pouco nos municípios, prioriza serviços próprios e não organiza a rede como deveria. Tudo isso sobrecarrega os municípios, que não dão conta de organizar a atenção primária e a urgência e emergência de baixa complexidade.
O hospitalocentrismo
No imaginário popular, política de saúde é sinônimo de hospital. A associação está relacionada com a história da atenção à saúde no Brasil. A construção de pequenos hospitais por fazendeiros e irmandades religiosas remonta ao início da colonização, quando foi criada a Santa Casa de Misericórdia de Santos, em 1543 – a mais antiga instituição hospitalar em funcionamento no país.
Já no começo do século 20, começam a surgir as grandes unidades hospitalares públicas, como os sanatórios e os hospitais universitários. Uma dessas unidades foi o Hospital do Mandaqui, fundado em 1938 pelo governo paulista para tratamento de tuberculose. Assim, a construção de hospitais pelo poder público é mais antiga que as políticas de atenção básica à saúde, que se consolidaram apenas com a criação do SUS. Isso tudo explica a proliferação de pequenos hospitais e a centralidade dos complexos hospitalares como principal lugar para o tratamento de doenças.
Para Quitéria dos Santos, 87, sempre foi assim. Quando precisa sair de casa para passar por algum atendimento médico, prefere ir ao Hospital do Mandaqui do que a uma unidade de atendimento básico. “Ela não gosta de passar na AMA (Assistência Médica Ambulatorial) porque, se precisar fazer qualquer coisa, vão mandar para cá. O legal de vir aqui [no Hospital do Mandaqui] é que tem tudo: exame de sangue, raio-X, todos os exames”, conta a aposentada Odete dos Santos, que acompanha a mãe às consultas e exames.
As redes de saúde são organizadas de acordo com o grau de complexidade que são capazes de atender – baixa em postos de saúde, média em AMAs e pequenos hospitais, e alta em hospitais de referência. “Alguém com um agravo de saúde agudo deveria ir para a AMA, não para o hospital [de referência]”, diz Antônio Jorge. Contudo, o Hospital do Mandaqui, além de receber pacientes transferidos, possui portas abertas para qualquer pessoa que busque atendimento espontaneamente.
“Há um movimento errático do usuário, e ele tem uma legitimidade. Se a atenção básica não dá resposta, ele vai para a porta do hospital”, acrescenta Maria do Carmo. Para Gatti, a atenção básica é mal provida de unidades e pouco resolutiva. “Isso sobrecarrega a assistência hospitalar. Não é certo o Hospital do Mandaqui estar atendendo resfriados”, completa Gatti.
Os hospitais pequenos têm função estratégica na rede, quando se especializam no atendimento de pequenas urgências e na estabilização do paciente para encaminhamento para estabelecimentos maiores.
“Ele resolve bem casos pouco graves de descompensação diabética, hipertensão, crise asmática, apendicite, pequenas cirurgias, parto normal e cólica renal. E precisa do que todo hospital geral precisa: material e equipe básica. Ninguém vai levar um politraumatizado para um hospital desses”, diz Carmo.
Mas, quando está mal posicionado ou sem função definida na região em que presta serviço, hospitais com menos de 50 leitos são de fato ineficientes.
E a fila cresce
Os problemas na rede de baixa e média complexidade têm reflexo nas filas dos principais hospitais do país, que ficam ainda maiores.
No Hospital Geral do Estado, em Maceió, os problemas típicos das emergências públicas se repetem. A família do aposentado Gabriel Juvêncio da Silva, 70, reclamava que ele esperou sentado em uma cadeira por 11 horas porque não havia leito ou maca para deitar. “Meu pai está até agora num local inadequado, e nada de o hospital tomar uma posição. Ele passou mal em casa e, inicialmente, disseram que ele teve um AVC [acidente vascular cerebral], mas nenhum exame foi feito”, reclamou Vanusa Maria da Silva, 40.
Quitéria dos Santos passou pelo mesmo martírio da espera e do desconforto no Hospital do Mandaqui quando foi internada por causa de quadro de confusão mental. “Ficamos até no corredor [referência à espera em maca improvisada no corredor por falta de vaga em quarto]. Essa é a parte dolorosa. Não são confortáveis as cadeiras”, conta sua filha, Odete. Outra espera que a família enfrentou, desta vez de quatro meses, foi para a realização de uma colonoscopia. “Demora muito para ser chamado. O médico bem que avisou: ‘Tem fila!’”, conta ela.
A distribuição desigual de hospitais agrava o problema. Segundo os especialistas, os principais centros hospitalares do país estão concentrados nas regiões Sul e Sudeste. A desigualdade na oferta ocorre também no interior dos estados, com concentração nas capitais. “A distribuição de equipamentos é ruim. Estão em municípios de grande porte. Não há leito disponível para rotatividade”, diz Oswaldo Tanaka.
O HGE, por exemplo, é o único em Alagoas referência no atendimento de média e alta complexidade a vítimas de queimaduras, doenças coronarianas e vasculares, AVC, traumas, ortopedia e pediatria. Já a fila no Hospital do Mandaqui, em São Paulo, reflete os problemas da distribuição desigual de atendimento hospitalar no país. Além de drenar os casos de emergência da zona norte da capital paulista, recebe pacientes de fora do estado.
A estudante Carolaine Fernandes, 18, conta que convenceu o pai a vir de Belém do Pará para São Paulo para procurar atendimento médico para hipertensão e diabetes. Após realizar exames em uma AMA, ele foi encaminhado ao Hospital do Mandaqui devido a alterações em eletrocardiograma. “As pessoas reclamam do atendimento aqui porque não conhecem o atendimento de outros lugares”, conta Fernandes.
“São Paulo absorve atendimentos de média e alta complexidade de todo o Brasil”, diz Antônio Jorge, que responde pela rede de atendimento hospitalar do estado. De acordo com levantamento feito pela AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), o estado de São Paulo concentra 24,1% dos hospitais com UTI do Brasil. Apenas 15% dos municípios brasileiros possuem leitos de tratamento intensivo.
A falha no que é bom
A grande demanda e a superlotação também comprometem os atendimentos de urgência, principal vocação dos hospitais de alta complexidade, como o Mandaqui. “Meu sogro teve um AVC e ficou em uma fila na enfermaria lotada aguardando vaga na UTI. O caso dele era de emergência, mas os médicos explicaram que todos ali eram casos de emergências. ” Raphael Parente, advogado (foto).
Outra queixa está na falta de atenção a pacientes. A pedagoga Daniele Gambaroti, mulher de Parente, conta que precisou levar uma coberta para seu pai porque não tinha no hospital. “Mas eles não queriam deixar que eu entregasse porque poderia sumir. Eu disse que não teria problema se sumisse”, conta Gambaroti. “Por causa da falta de médicos e enfermeiros, os profissionais ali trabalham muito estressados e descontam isso nos pacientes”, completa Parente.
Uma vistoria realizada pelo Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) em março constatou que o pronto-socorro do Hospital do Mandaqui estava sem médicos clínicos três vezes por semana e havia mais de 40 pacientes internados pelos corredores e sala de medicação.
No HGE, uma visita da Força Nacional de Fiscalização do Sistema Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) encontrou problemas como superlotação e sobrecarga de trabalhos. No local, os fiscais encontraram ainda duas crianças dividindo o mesmo leito, sem nem sequer uma grade de proteção para evitar queda.
Para Eder Gatti, do Simesp, os problemas no atendimento estão ligados a escassez de funcionários e carência de materiais. “Médicos e enfermeiros acabam tendo que dar conta de mais pacientes do que deveriam. A falta de profissionais aumenta a sobrecarga de quem trabalha e compromete a assistência de quem depende dela”, afirma.
“Isso tudo colabora para que a qualidade da assistência caia com a superlotação”, diz o chefe do departamento de gestão do exercício profissional do Cofen, Walquírio Almeida.
Alta demanda sobrecarrega centros de referência
Para Antônio Jorge, da Coordenadoria do Serviço de Saúde do Estado de São Paulo, a espera e as filas são explicadas pela alta demanda. “Entretanto, todos recebem o devido acolhimento”, afirma.
O Hospital do Mandaqui realiza mensalmente 13 mil atendimentos no pronto-socorro e cerca de mil internações. São 355 leitos de internação e 40 leitos de UTI. É utilizado um sistema de classificação de risco, em que são priorizados casos graves e gravíssimos, como acidentados e politraumatizados, por exemplo. De acordo com Antônio Jorge, quando não há vagas na UTI devido à sobrecarga de pacientes, é solicitada transferência para outro hospital. Quem espera no corredor não deixa de ser acompanhado pelos profissionais de saúde, afirma.
Ele aponta o recente aumento do uso da assistência pública por quem antes utilizava planos de saúde para explicar o aumento da demanda. “Dois milhões de habitantes saíram da rede privada para o SUS. A rede sobrecarrega, não dá para ter atendimento imediato. Mas serviço público atende todo mundo. ”
Sobre o paciente Gabriel Carlos, que não conseguiu tratamento para cálculo renal, o coordenador diz que a pedra não representava risco porque não estava obstruindo canal no rim e que foi agendado procedimento para retirada em uma AMA. Já sobre Quitéria da Silva, ele afirma que os exames e consultas foram agendados.
A direção do HGE afirma que, “devido ao grau de complexidade assistencial, sempre com suas portas abertas 24 horas, é possível que a demanda [variável conforme o dia] ultrapasse sua capacidade de leitos [255 conveniados com o Ministério da Saúde]. Entretanto, todos recebem o devido acolhimento, ainda que este seja de responsabilidade dos municípios”.